Banalização de candidaturas ao Património Imaterial?


Nos últimos anos, tem-se assistido, com alguma perplexidade, a uma verdadeira corrida às candidaturas ao Inventário do Património Cultural Imaterial. De norte a sul do país, incluindo aqui nas nossas ilhas, sucedem-se iniciativas que, na ânsia de obter um selo de reconhecimento, procuram inscrever como património práticas, costumes ou objetos cuja relevância cultural é, no mínimo, discutível. O fenómeno, que à partida deveria ser motivo de celebração, está a transformar-se numa moda algo perigosa, ou seja, uma espécie de “por dá cá aquela palha”, onde tudo serve para ser elevado a património.
É inegável que a cultura popular, nas suas diversas expressões, merece ser reconhecida, estudada e preservada. O Inventário do Património Cultural Imaterial, enquanto instrumento de salvaguarda, tem um papel essencial na valorização da nossa identidade coletiva. Contudo, o seu valor começa a ser posto em causa quando se observa uma proliferação de candidaturas motivadas mais pela vaidade local ou por interesses turísticos.
A distinção de práticas culturais deve assentar em critérios rigorosos, como a autenticidade, a continuidade histórica, o valor simbólico e a representatividade no seio das comunidades. Quando tais critérios são substituídos por campanhas de visibilidade ou estratégias de marketing regional, corre-se o risco de vulgarizar o próprio conceito de património. Classificações que deviam ser excecionais passam a ser triviais, diluindo-se o prestígio que deviam acarretar.
Por outro lado, esta corrida desenfreada gera uma espécie de competição entre entidades e até grupos informais, numa tentativa de “marcar território” cultural. Em vez de promover a cooperação e a partilha de saberes, alimenta-se o bairrismo, onde o que importa não é preservar a tradição, mas ostentar um título.
É urgente recentrar o debate, no que diz respeito ao património cultural imaterial que não pode ser tratado como um catálogo de curiosidades ou um pretexto para ganhar fundos. Deve ser, isso sim, uma responsabilidade coletiva, assumida com seriedade, rigor e visão de futuro. Caso contrário, arriscamo-nos a transformar um instrumento de salvaguarda num simples adereço decorativo, esvaziado de conteúdo e sentido.
A legislação portuguesa que regula as candidaturas ao Inventário do Património Cultural Imaterial é essencialmente o Decreto-Lei n.º 149/2015, que estabelece o regime jurídico do património cultural imaterial em Portugal. Esta legislação articula-se também com a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial da UNESCO, que Portugal ratificou em 2008.
Como tal, pretende-se identificar e reconhecer manifestações do património cultural imaterial relevantes em território nacional, bem como salvaguardar e valorizar práticas, expressões, conhecimentos e saberes que formam a identidade cultural das comunidades.
Assim sendo, procura-se assegurar a continuidade das práticas culturais, promovendo a sua transmissão intergeracional e estimular a participação ativa das comunidades detentoras dessas práticas.
Fazer parte do Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial representa uma importante mais-valia para as comunidades e práticas culturais envolvidas. A inscrição garante o reconhecimento oficial da manifestação como parte integrante do património cultural português, valorizando-a e legitimando o seu significado histórico, simbólico e identitário. Este reconhecimento permite também o acesso a mecanismos de proteção e salvaguarda, essenciais para assegurar a continuidade das tradições e prevenir o seu desaparecimento.
Preservar a cultura não é empilhá-la em listas. É compreendê-la, respeitá-la e garantir que permanece viva, relevante e digna. Nem tudo é património – e ainda bem.

Laisser un commentaire

Votre adresse courriel ne sera pas publiée. Les champs obligatoires sont indiqués avec *